A GAROTA-CORVO, DE ERIK AXL SUND

    Jeanette Kihlberg é uma mulher que vive uma vida conturbada, conciliando  seu trabalho como detetive e suas responsabilidades como mãe e esposa com muita dificuldade. Seu marido Åke é artista plástico, porém vive desempregado por opção, cuidando da casa e do filho, pois acha que não está preparado para iniciar suas exposições e vendas de quadros. Sendo assim, Jeanette é a única pessoa que coloca dinheiro dentro de casa, precisando constantemente pedir dinheiro emprestado ao seu pai para pagamento de contas, situação que Åke parece não se importar.

    
As coisas ficam ainda mais complicadas, quando ela precisa liderar sua equipe de investigação no caso de uma série de crimes completamente brutais contra crianças. Tudo começa na cidade de Estocolmo, na Suécia, quando um corpo de um menino torturado, mutilado e em estado de mumificação é encontrado próximo à estação do metrô. A condição do cadáver não bate com o local onde ele foi encontrado, pois seria impossível que estivesse naquelas circunstâncias durante tanto tempo sem ser notado por ninguém. Depois da aparição de novos corpos em outras localidades, não há dúvidas de que um serial killer implacável e inteligente está a solta e sabe muito bem como apagar seus rastros. Jeanette tem dificuldades em avançar no caso devido a burocracia e alguns impedimentos vindo de seu próprio chefe, que a trata com menos valor, tanto por ela ser mulher, quanto por acreditar que ela está valorizando demais os crimes, já que são apenas crianças e, em sua maioria, indigentes ou refugiadas.

Vivemos no mundo dos homens. [...] Onde ninguém vale mais do que um pedófilo ou um estuprador. Só se pode valer menos.

  

   

Paralelamente, a psicóloga Sofia Zetterlund, que apesar de sua formação, também tenta adaptar-se aos problemas pessoais com extrema dificuldade, tendo em vista que tem de atender separadamente, de forma periódica, dois pacientes complicados e diagnosticados com TDI (transtorno dissociativo de identidade). Um deles é Samuel Bai, uma criança soldado, vítima e testemunha dos conflitos armados em Serra Leo. A outra é Victoria Bergman, uma mulher que foi abusada pelo pai desde os três anos de idade. O cuidado que Sofia precisa ter com cada um deles é precioso, pois qualquer comunicação errada, pode engatilhar uma reação violenta e perigosa.

    Victoria precisou criar múltiplas personalidades para superar suas experiências e nós conhecemos sua história através de gravações em fitas feitas pela psicóloga e ao longo de narrações obscuras da "garota-corvo".  

É fácil matar alguém. Os problemas são de ordem mental, com condições bem diversas. Para a maioria das pessoas, é necessário passar por uma série de barreiras. Empatia, consciência e reflexão geralmente funcionam como impedimento para a prática da violência assassina.Mas para alguns, é tão simples quanto abrir o leite.

   

A situação se complica ainda mais, quando ela passa a atender um homem iníquo chamado Karl Lundström, acusado pelos crimes de pornografia infantil e abusos sexuais contra a própria filha, um indivíduo com ideologias malucas sobre seus próprios atos, dizendo à psicóloga que este impulso é antigo na humanidade, sendo errado apenas nos dias de hoje. A vida de Sofia e Jeanette se cruzam quando a detetive precisa do depoimento da psicóloga para ajudar nas buscas do serial killer, que a sua equipe de investigação suspeita ser Karl Lundström.

Para se sentir seguro, é preciso se sentir compreendido [...] Mas essa é uma falha fundamental na maioria das relações humanas. A gente esquece de ver um ao outro, de valorizar o que o companheiro faz, já que o único caminho desejável é o nosso. É culpa do individualismo. Se tornou uma religião. Na realidade, é estranho que, em um mundo cheio de guerra e sofrimento, as pessoas tenham desprezo pela segurança e pela lealdade. Que baita paradoxo!

    Concebido originalmente como uma trilogia, composta pelos livros Krakflickan, Hungerelden e Pythians Anvisningar e posteriormente combinados em um único volume, a Garota-Corvo é um thriller psicológico impactante em todos os sentidos. O clima é de muita tensão durante toda a leitura. Os mistérios revelados em cada capítulo são surpreendentes e originais. Todo mundo ama um plot twist bem bolado e aqui neste thriller eles chovem aos montes, todos espetaculares, daqueles que você seria capaz de deixar cair o livro no chão de tanto impacto. O escritor Erik Axl Sund é o pseudônimo da dupla de autores suecos Jerker Eriksson e Håkan Axlander Sundquist, dois gênios que já entraram na minha lista de autores favoritos de literatura policial. A propósito, a Suécia está repleta de escritores excepcionais do gênero thriller. Depois que conheci Stieg Larsson e sua insuperável trilogia Millennium em 2008, percebi uma grande entrada de outros autores nórdicos talentosos aqui no Brasil.

Crimes contra crianças, pedofilia, incesto e estupro são capazes de rasgar nossas almas, Jaenette tenta a todo o custo juntar as informações para pegar o assassino, enfrentando barreiras dentro da própria polícia. Enquanto isso o leitor vai tendo conhecimento do doentio serial killer — que está longe de ser pego devido a complexidade de seus crimes — dentro de capítulos específicos.

    Não se pode confiar em ninguém. Pessoas podem se tornar monstros impiedosos após serem abusadas e terem suas vidas destruídas por seres indiferentes, nojentos e severos por tanto tempo. Todo o mal recebido se torna ódio e escuridão pura. O livro é repleto de personagens femininas envergonhadas, que sofreram abusos e perderam a fé na humanidade, principalmente ao perceberem que as pessoas próximas com as quais elas poderiam contar, são as que menos se importaram.

'Todos esses caras', pensou ela, 'acham que têm o direito de exigir o que querem e fazer com que me sinta culpada.' Seus chefes, Åke, todos os babacas que ela passava os dias tentando prender.

Esses homens de um jeito ou de outro influenciavam sua vida, que seria muito mais simples sem eles.

    Para amantes de thrillers, literatura policial ou um bom suspense, a Garota-Corvo é um prato cheio, escrito de forma exímia e original, contendo tudo o que um bom thriller necessita e recheado de reviravoltas incríveis. Apesar do número de páginas ser de 584, é uma leitura muito fluida e rápida, fácil de devorar página a página.  Confesso que um dos plot twist do livro se tornou na minha opinião um dos melhores que já li em minha vida. Fiquei completamente pasmo e os autores merecem serem aplaudidos de pé. Vocês podem até pensar que todos os thrillers tem seus momentos sombrios, mortes macabras e assassinos imensamente cruéis, mas A Garota-Corvo está um passo a frente de muitas histórias do gênero. Vale a compra e leitura do livro.

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